Banheiro no teto do mundo: uma crônica geográfica

Textículo de Luís Giffoni.

     Era um banheiro, no mínimo, exótico. À beira de um abismo, gretas entre as tábuas do piso e das paredes permitiam-me participar da vida e da paisagem lá fora. As janelas – se posso chamar de janelas as duas aberturas retangulares, à altura da barriga, sem vedação alguma – davam livre trânsito ao vento e ao frio. Teto não havia, o que trazia vantagens: de dia, o céu azul; à noite, pela ausência de luzes, muito mais estrelas que numa cidade. O vaso, um caixote de aglomerado com um buraco central, mirava as copas de árvores dezenas de metros abaixo. A água corrente, vinda numa mangueira de plástico rachada, inundava o assoalho e desaparecia entre as frestas. Uma lata de óleo de vinte litros, dependurada numa barra de ferro, segura por um pouco confiável barbante, fazia as vezes de chuveiro e funcionava em regime de urgência. Se demorasse para me lavar, perdia o calorzinho e recebia uma ducha gelada no lombo.



     Por uma das janelas, eu observava a tropa de burros liderada pela madrinha com penachos na cabeça, crina e cauda penteadas, andar trôpego. Os animais coleavam cordilheira acima, à beira do precipício, ao longo da trilha estreita, único meio de contato com a vila mais próxima, a quase oitenta quilômetros de distância, isto é, a três dias de marcha. Minha dor de barriga piorava só de imaginar que talvez precisasse de um médico. O cincerro, pausado, dolente, interrompia o silêncio da tarde, deixando no ar um clima de repouso.

     Através da segunda janela, a floresta se perdia até o horizonte, onde os picos do Himalaia alcançavam mais de oito mil metros. Outro penacho, agora formado por vento e neve, emoldurava dois cumes que lembravam rabo de peixe.

     Pelos desvãos da porta, examinei a casa com aspecto de celeiro. Na fachada, alguém escrevera com pincel quase seco: HOTEL. A falta de tinta deixava à mostra o reboco sob as letras. O pátio de chão batido lembrava uma quadra de saibro para tenistas. Uma velha, enfeitada com várias argolas nas narinas, no septo e nas orelhas, sem pressa alguma varria o terreiro com vassoura de folhas. Sobre o muro ao fundo, despontava o chuchuzeiro carregado. Ao indagar à senhora o nome da planta, ela me tinha dito sem relutar: chuchu. Como nosso vocábulo chegara até ali, ou quem sabe, como viera até nós?



     Na mesa comprida em frente ao quarto, Cristina, minha mulher, acabava de dar as cartas para uma partida de truco ao lado de três aldeões, aos quais ensináramos, sem dificuldade, as manhas do jogo. Um deles berrou algo que soou como "tuco!". Curiosos ao redor pareciam indagar-se o significado do espalhafato. Alheia a tudo, uma iaque peluda, na eterna pose de mascar chicletes, aguardava o momento da ordenha do leite que se adicionava ao chá.

     De repente, lembrei-me da lata-chuveiro, ergui-me, apalpei-a. A água estava quase fria. Abri o registro e, tiritando, removi a sujeira de dias sobre o corpo. Aquele hotel era o primeiro que encontrara em uma semana de caminhada no Nepal. Custava um real a diária, com direito ao banheiro que se abria para o teto do mundo. A vida não se fazia de rogada e o decorava com um toque de shangrilá.

0 comentários: